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4 de junho de 2009

Um voo trágico nos faz repensar a vida


Com sorte, você atravessa o mundo. Sem sorte não atravessa a rua” (Nelson Rodrigues)

1º de Junho foi um dia diferente para todos nós. Um dia mais duro. Em que se acorda com a notícia de que um avião sumiu no oceano com 228 pessoas a bordo. Famílias, casais enamorados, oito crianças, um bebê, passageiros mal-humorados, outros de bem com a vida, os que tossem, os que roncam e os que não dormem. Gente que ia e gente que voltava. O avião saíra do Rio, ia para Paris, e desapareceu do radar na altura de um de nossos paraísos, o arquipélago Fernando de Noronha. Tempestade em “zona de convergência intertropical”, raios, trovões, pane elétrica, nuvens espessas – as chamadas cumulus nimbus – e o sumiço nas águas. Ou no céu. Uma das hipóteses é que o Airbus A330 da Air France tenha se desintegrado no ar antes de cair no Atlântico.

Meu filho de 22 anos, candidamente, me disse, sentado a meu lado em frente ao computador.

“Mãe, da próxima vez que você viajar, sei lá, olha antes a meteorologia”.

Faço muito essa rota, sempre pela Air France. Vivi em Paris como correspondente vários anos.

Eu respondi: filho, quando tem que ser…

Há gente que passa a vida inteira sem viajar de avião por medo. E pode acabar atropelado na calçada. Vamos morrer todos um dia e, como diz um amigo meu, o psicanalista Luiz Alberto Py, “é mais saudável sentir medo do provável que do possível”. Possível tudo é. Nunca senti medo de voar. Costuma me bater uma calma até estranha quando me sento no avião. Lembro uma vez, quando viajava com meu ex-marido físico (cujas mãos ficam suadas ao voar) e ele me disse: “Não, Ruth, você está de provocação. Vai começar um capítulo do livro na hora de aterrissar?” Há dois anos, fiz um vôo de asa-delta, saltando da Pedra da Gávea, com um instrutor. Sobrevoei um vulcão no Chile com um Cessna, em dia de ventania, vendo a lava fumegante. Fiz várias “loucuras”, como descer de helicóptero militar numa zona minada em Angola em tempos de guerra, ou andar num carro dirigido pelo inglês Nigel Mansell no circuito de Interlagos com a pista molhada. Não me lembro de ter sentido medo, apenas adrenalina. O jornalista costuma ser, sim, um pouco irresponsável com a própria vida. Mas a vive com paixão.

Esses passageiros que iam para Paris não faziam nenhuma loucura. Como ouvi ontem de um especialista, é mais fácil morrer voltando de táxi para casa do aeroporto, depois de perder o avião por alguma eventualidade. Cerca de 85 mil aviões comerciais decolam por dia no mundo. Este não chegou ao destino.

Entre os 58 brasileiros que embarcaram no Galeão, havia, como em todos os voos, gente nascida em vários estados, de todas as idades, para quem Paris significava trabalho, prazer, volta para casa, ou simples escala de conexão. A jovem Ana Carolina, de 28 anos, trabalhava em comunidade carente no Rio com crianças e jovens envolvidos com violência armada. A família gaúcha Chem – cirurgião plástico, psicóloga e filha executiva – ia para a Grécia passar um mês de encantamento. Havia um oceanógrafo. O maestro que iria reger em Kiev, na Ucrânia. Uma cantora e dançarina. Professores universitários, engenheiros, executivos. Um deles, da Vale, ia a Paris receber um prêmio. Um Orleans e Bragança, descendente de dom Pedro II. Um casalzinho em lua de mel – a cerimônia tinha sido no sábado. Também estavam no voo 447 alguns brasileiros que voltavam para a Europa após visitar as famílias no Brasil. Mais e mais fragmentos de vida vão surgir e nos entristecer esta semana.

A tragédia do Airbus A330 não apenas nos enche de dor. Ela nos confronta com nossa fragilidade. Dá medo sim. De sumir, de deixar de existir para quem amamos sem ter tempo de mandar um SMS, e de fechar precocemente a agenda da vida quando ainda há tanto a fazer. Mesmo os jovens, que se julgam imortais, imunes a quase tudo, sentem um aperto. Num momento assim, quem brigou faz as pazes. Quem se lamenta por frivolidades dá um tempo. Há uma celebração interna por estar vivo. E me invade uma tremenda vontade de continuar aproveitando tudo com intensidade.

Como dizia nosso grande cronista Nelson Rodrigues, “sem paixão não dá nem pra chupar um picolé”.

Você é apaixonado pela vida? Ainda tem tempo.


por Ruth de Aquino (Época)

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